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Il Viaggio a Reims no Centro Cultural de Belém: uma ópera cómica para a paz ansiada
A obra de Rossini, um tremendo fogo-de-artifício de vozes, sobe ao palco por estes dias em Lisboa. São 17 cantores solistas que se põem na pele de personagens de toda a Europa — e falam-nos de ontem e de hoje
Um fogo-de-artifício vocal é lançado por estes dias no Centro Cultural de Belém (CCB): a ópera de Rossini Il Viaggio a Reims, estreada em 1825 em Paris, sobe hoje e amanhã ao palco em Lisboa, às 19h. Não é a primeira vez que a Orquestra de Câmara Portuguesa (OCP) se lança na ópera, mas nunca tinha havido nada assim para esta jovem formação: juntam-se nesta produção 17 cantores, um coro participativo e vários bailarinos. Uma cenografia de Nuno Esteves (a.k.a Blue) e uma encenação nova de Teresa Simas vão dar espaço, corpo e luz à pirotecnia rossiniana. E no fosso do Grande Auditório do CCB estará a OCP numa formação alargada. “É uma orquestra ainda considerável, tem trombones, tem quatro trompas, tem percussão, e portanto é um bocadinho maior do que o habitual”, explica-nos o maestro Pedro Carneiro, que assume a direcção musical da produção, tendo a missão de juntar todas as peças, com as vozes ao centro. “Penso que o canto é mesmo o central nesta ópera — são 17 pessoas mais um coro participativo, e os cantores trazem o seu apport, as suas vontades, as suas questões criativas, a sua musicalidade. Organizar tudo isso é também um tour de force para quem está deste lado”, diz ao PÚBLICO.
Mas o desafio também é grande para quem dá o litro, no palco ou no fosso: “Para eles próprios é desafiante lidar com um elenco tão grande”, sublinha o maestro, que nos fala com entusiasmo no intervalo de um ensaio. Para o director musical, é fascinante ter estas equipas “a rolar”, com tantas expectativas e tantas energias distintas. “Até para os técnicos do CCB, e não só para o público que vai fruir da ópera, este é um espectáculo muito interessante e que vai deixar grandes marcas, porque investe no potencial humano das equipas técnicas, que têm sido fantásticas”, diz.
Também não é novidade haver ópera no CCB, mas uma produção assim exige uma transformação radical do Grande Auditório. “Temos de transformar isto numa casa da ópera”, explica-nos Pedro Carneiro. E acrescenta um lado subjectivo, que tem importância decisiva: “Também temos de fazer com que toda a gente se apaixone pelo processo.”

Uma ópera cinematográfica
Junta-se à conversa com o PÚBLICO Teresa Simas, outra das pessoas fundamentais do “lado de cá”. A pouco tempo da estreia, já se sente o frenesim da ópera. “Nunca se recua no palco!”, diz a uma das trabalhadoras da equipa técnica que quase se desequilibra ao tentar recolocar um objecto. Mas tudo parece correr sobre rodas e o que é preciso é dar a ver e a ouvir muitas pequenas coisas: “Há uma série de detalhes interessantes, de subtilezas, que de repente me fizeram olhar para esta obra de uma forma cinematográfica. A dança vem sempre, porque está no meu ADN, é impossível largá-la...”, diz. “E ainda bem!”, interrompe Pedro Carneiro. “A Teresa vem da dança, há imenso movimento, e ela está também a fazer as luzes, em co-criação com um dos técnicos do CCB, o Raul.”
Teresa Simas enquadra a presença da dança de uma outra forma: “A ópera é [uma expressão artística] multidisciplinar, e, se a dança saiu da ópera, também pode voltar a entrar”, diz, com um sorriso nos lábios. Insiste na ideia de que Il Viaggio a Reims “é uma obra extremamente cinematográfica”, que “exige a compreensão do que os cantores estão a cantar, uma performance de extremo virtuosismo, mas também do assunto”. E contextualiza: “Il Viaggio a Reims foi feita para uma ocasião, a coroação de Carlos X. Era preciso agradar ao rei, que não era grande apreciador de ópera, e então o Rossini juntou um elenco luxuoso e tratou de trazer para a partitura o virtuosismo das estrelas da época. É com base nisso que esta ópera é construída.” Dezassete cantoras e cantores entrarão agora em cena: Bárbara Barradas, Cátia Moreso, Carla Caramujo, Rita Marques, João Pedro Cabral, Konu Kim, Gianluca Margheri, Luís Rodrigues, João Merino, André Henriques, Nuno Dias, Frederico Nobre Projecto, Cecília Rodrigues, Rita Filipe, Jacinta Albergaria, Bruno Almeida e João Oliveira.
Il Viaggio a Reims foi levada à cena poucas vezes no seu tempo, por se tratar de uma obra de circunstância. Mas tem sido repescada nas últimas décadas e reconhecida como uma grande ópera cómica do compositor italiano. No centro está de facto a “pirotecnia vocal”, como o CCB sublinha. Pedro Carneiro chama-lhe mesmo uma “passerelle das superstars”, neste caso com um enorme elenco maioritariamente composto por jovens cantores portugueses, complementado por intérpretes de outras nacionalidades. A encenadora sugere que podemos ir mais fundo. “Começou por ser uma passerelle, de facto, mas quando começámos a fazer uma pesquisa mais aprofundada sobre a época, sobre a própria obra, com o Leonardo Senti, que está a trabalhar comigo desde Setembro para aprofundarmos a compreensão destes personagens tão heterogéneos, ela ganhou outras dimensões: como é que se reúnem estes personagens, esta diplomacia toda, um é russo, outro é polaco, outro é alemão, etc...”
“O público é Europa”
É a Europa toda, afinal, que sobe ao palco do CCB, num momento histórico em que tantas interrogações se levantam sobre os futuros possíveis deste continente e da própria “ideia de Europa”. Uma ideia antiga de fraternidade, sempre ameaçada. Teresa Simas diz-nos que uma ópera assim “nunca é só uma comédia”, e que esta é de grande actualidade. O público que assistir a Il Viaggio a Reims vai “encontrar um Rossini, em 2022, a falar um pouco sobre o que se está a passar” hoje.
A guerra no horizonte, claro, mas não só. Pedro Carneiro sublinha a profundidade de Rossini, sob a aparente ligeireza deste divertimento. “Ele faz uma coisa que eu acho genial: escreve música que parece simples, que não é simples, sobre assuntos que parecem simples, que não são simples”, diz o director musical desta produção tripartida que junta a OCP, o CCB e a Égide — Associação Portuguesa das Artes. E acrescenta ainda: “Eu diria que, mais do que sobre o que se está a passar, é sobre os motivos pelos quais se tem passado o que se tem passado...”
E lembra-se de repente de um dos versos da ópera: “Dell’Europa sempre fia!” A certa altura canta-se “Agora que entre as pessoas/ reina a mais plácida harmonia,/ o feliz destino da Europa/ está garantido.” Ideias de fraternidade entre os povos que Rossini põe em música deliciosa, cheia de trocadilhos musicais e linguísticos no libreto de Luigi Balocchi.
Para um compositor que também era exímio cozinheiro, a “delícia” aplica-se bem e Pedro Carneiro deixa- se levar pela metáfora culinária: “O público pode ficar por onde quiser, e vai ficar sempre bem servido: se provar só a superfície, ou se quiser saber a receita e fazer reverse engineering à receita.” Ou seja: “Quem quiser apenas ser divertido pode fazê-lo, mas quem quiser ir um pouco mais longe também. E quem quiser ir mesmo, mesmo fundo também pode.” “É a isso que Rossini nos convida — porque o público também é Europa”, diz o maestro.
E a culinária é válida igualmente para a música de Rossini: “São os seus crescendos em textura: põe uma camada, depois uma segunda... Eu diria que o mais difícil é fazer com que não se normalize a riqueza da partitura. Não é só lento-rápido-recitativo, há muito mais do que isso. É preciso procurar as subtilezas entre os tempi, onde a orquestra tem a possibilidade de não apenas acompanhar os cantores, mas de criar a sua riqueza, de interagir com as vozes”, explica Pedro Carneiro.
A tudo isto vem somar-se um coro participativo, com cantores de diferentes idades e proveniências. “Para mim foi uma experiência extraordinária, porque estão absolutamente disponíveis. Consegui fazer um trabalho físico e de movimento bastante complexo, porque eles têm uma vontade de aprender e um entusiasmo enorme”, diz Teresa Simas. Pedro Caneiro confessa uma grande alegria com este coro que se juntou para a ocasião: “Ver todas estas gerações... é uma lição para nós, quando eles entram no palco. Tem sido lindo ver que estas pessoas estão a pisar um chão sagrado.”
Il Viaggio a Reims foi a última ópera em língua italiana de Rossini. Seguir-se-iam apenas quatro óperas em francês, escritas para teatros parisienses, a última das quais o seu Guillaume Tell, em 1829. A partir daí, embora tenha continuado a compor, afasta-se do mundo da ópera onde tinha triunfado e que lhe deu uma imensa e duradoura fama. Rossini viveria ainda até aos 76 anos, mas escreveu todas as suas 39 óperas até aos 37. Apesar de ter apenas 32 anos quando compôs Il Viaggio a Reims, era já muito admirado na Europa e tinha já estreado as suas mais famosas composições para o palco, entre as quais O Barbeiro de Sevilha.

Tudo pode correr mal, mas...
Il Viaggio a Reims é tudo isto: passerelle de cantores, convite ao divertimento e à reflexão, em que o público pode mergulhar a seu bel-prazer e ao mesmo tempo é convidado a pensar sobre a possibilidade da paz e da harmonia nesta complicada Europa. Harmonia, como na música, segundo o maestro: “Ao terceiro dia os cantores já sentiram a orquestra e, passo a passo, neste jogo de pressões que é a ópera, as pessoas começaram a dar a mão...” Foi um desafio enorme, e também para a OCP, porque uma ópera destas, com tanta gente envolvida e 17 superstars, não é coisa que se possa fazer todos os dias.
Pedro Carneiro e Teresa Simas têm de voltar para o ensaio — “Já estão a dar o lá”, faz notar o maestro com sentido de humor. Com a pressão do tempo e a intensidade quase louca de Rossini a ajudar, tudo se complica. Chegará Il Viaggio a Reims sã e salva ao palco do CCB? “Nesta ópera está a ideia de que as vozes díspares se conseguem unir”, diz Pedro Carneiro. “Mas a orquestra também, com o maestro a fazer a ponte, mais os bailarinos, o cenário, a equipa técnica, tudo — no final, com estes ingredientes que nos dão a possibilidade de tudo correr mal, temos a harmonia e... ‘viva a paz’. Acho que é mesmo essa a mensagem fnal.”